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Oração aos moços - Crônica de Paulo Mendes Campos
Oração ao Moços
Paulo Mendes Campos
O professor Mira y Lopez criou um neologismo para uma arte (ou ciência) nova: eugeria, velhice feliz. Os gregos, que dispunham dos dois elementos dessa palavra, não tiveram o otimismo de juntá-los. Sabiam que a única forma de fazer a felicidade dos velhos é devolver lhes a juventude.
Andam a mexer muito com os velhos aqui no Rio ultimamente. Que a ciência e os cientistas procurem dar-lhes meios efetivos de preservar a saúde, que as leis assentem para eles os recursos próprios que lhes poupem penúrias e humilhações. Mas querer iludi-los com estimulantes psicológicos, ficar a discutir as suas tristezas em público, me parece impertinência. Deixemos os velhos em paz. Tratá-los como crianças, engambelá-los com ilusões, é ofender-lhes a dignidade. Envelhecer é cruel, ser velho é uma crueldade inevitável. A criatura humana, entretanto, tem o orgulho preliminar de poder aguentar a verdade. Só um velho palerma, indigno da velhice, iria acreditar que não é velho, que a velhice não existe, que a vida é um perene sorriso. Os velhos verdadeiros, honrados, sabem como se arrumar no seu canto, e têm o seu pudor e a sua gravidade. Por que incomodá-los? Não precisam de nós, que os aborrecemos com os nossos consolos. Respeitemos o reservado silêncio da idade avançada, na esperança de que também nos respeitem mais tarde.
A velhice é um sentimento muito íntimo, que não se pode violar com frioleiras sentimentais. O sentimentalismo habitual dos jovens diante dos anciãos é inoportuno e doloroso. Pretender reanimar um espírito mais vivido, mais experiente e mais amargado que o nosso é uma gafe impiedosa. Os velhos são mais sábios que os moços; estes jamais poderiam ensinar-lhes coisa alguma sobre a vida. E tantos gestos afetivos lesam muito mais do que confortam, tantas solicitudes inábeis estão sempre a reabrir feridas.
Nosso amor por uma criatura velha não deve ser uma opressão, uma tirania a inventar constantemente cuidados e carinhos chocantes, temores que machucam. Libertemos os velhos dessa fatigante e grotesca bondade. Deixemos que façam o que bem entendam, cometam as suas imprudências, desobedeçam aos conselhos médicos; que exagerem, quando lhes der vontade, na comida e na bebida, durmam fora de hora, esqueçam de tomar os remédios, fumem, apanhem sol, chuva e sereno, pratiquem exercícios violentos. Não chatear demais os velhos, que gostam de ser imprudentes. Não ter juízo é ainda um dos melhores prazeres da velhice. Mesmo que de vez em quando brinquem um pouco com a vida, não lhes demonstremos a nossa aflição: é um direito que tem. É por sabedoria, é porque não ignoram as manhas da vida que proporcionam a si mesmos essas compensadoras insensatezes. E é por egoísmo do bom que os moços, sobretudo os filhos, vigiam os velhos implacavelmente, como se vingassem da sua própria infância coibida.
Há uma série de coisas que não devem ser ditas aos velhos. Por exemplo: “vá dormir papai, o senhor deve estar exausto”; “amanhã eu levo a senhora ao médico, nem que seja à força”; “a senhora fique sabendo que está proibida de ajudar a cozinheira”; “o senhor parece uma criança, onde já se viu passar o dia deitado no ladrilho frio”; “cuidado com os lotações, olhe bem antes de atravessar a rua”; “tomou o seu remedinho”?: “descanse um pouco, mamãe, a senhora não está mais na idade de ficar nessa agitação que não para, que coisa horrorosa”; “cuidado com o degrau”; “quantas vezes já lhe disse, meu pai, para não sair à noite chapéu”?; “tome o mingau que faz bem”; “a senhora não precisa fazer nada, que eu sozinha faço tudo”.
Essas impertinências ferem os velhos e têm o dom de desampará-los ainda mais que a própria velhice. São palavras más, duras, nascidas de um sentimento de amor muito mal administrado. Mostram, eternamente, que não basta ser bom neste mundo, é preciso compreender e distinguir as bondades que não doem. A alma do homem não é tão simples que o exercício espontâneo do afeto seja suficiente para satisfazê-la. Gostar de alguém não nos confere privilégios tirânicos. Respeitemos os velhos, respeitemos infinitamente os velhos, sem sentimentalidades enjoadas, sem antipatia, sem o sadismo de certos tipos de ternura. Mas a verdade é que o mundo está cheio desses sentimentalões estabanados, que entram na intimidade dos outros derrubando e quebrando tudo.
Crônica de 27 de dezembro de 1958
Fonte: Portal da Crônica Brasileira